7 de agosto de 2016

Eu Tenho um Amigo


Eu tenho um amigo que vive com o coração na boca. Não gosta, mastiga a própria carne porque acha que a dor é uma forma de cura - se ilude. Faz alguns meses que se meteu no que gosta de chamar de amor; todos os dias, religiosamente, lambe o amargo entre os lábios e faz da língua lança e armadura. Beber o que o outro amargamente verte do coração, por esses dias, tem sido chamado de amor.
O meu amigo acredita nos finais felizes, e isto é evidente: dá pra ver nos olhos; nunca comentei, mas sempre percebi no melancólico crepúsculo refletido em seus olhos - à persistência do fulgor mediante o assombro da iminente noite damos o nome de esperança. O crepúsculo é uma esperança poente. Eu nunca o vi chorar - vez ou outra a voz embargava, talvez por vergonha do abusivo conto de fadas ou quem sabe com medo de um possível final infeliz, mas sempre recuperava a habitual e frágil graciosidade -, ainda assim eu sempre soube que as lágrimas não lhe eram estranhas, ele pertence às águas.
O meu amigo, tal qual César, enfim retoma posse de suas moedas de ouro - o seu Amor também. O que fazer quando demandas murcham à margem da vida e a paixão escorre pelo corpo do tempo?
Na parede do quarto o espelho reflete o inverso do reverso, só mostra o que precisa ser visto; o meu amigo não quer ver e o espelho respeita a decisão, respeita Dorian Gray, mas não o poupa da furiosa foice do Tempo. 
Eu tenho esse amigo que não sabe lidar muito bem com as coisas, que atrapalha A com Z, que é excessivo, que sofre calado, que chora quando ninguém vê, que tem um coração belíssimo cheio das melhores intenções, mas que não sabe lidar com o vazio que sempre vem. Eu tenho esse amigo que é tão eu que às vezes até dói.
No final, no fim do dia, bem lá no último ponto de luz, na resistência do crepúsculo, isso tudo não faz diferença eu sei que na verdade o que me dói é o fato do meu amigo ser muito eu, e vice-versa; porém enquanto eu escolho o espelho ele escolhe o vazio; é essa solidão a dois, das nossas decisões divergentes que me dói, e é ela quem espreme essas palavras de mim. 
Aguardo receoso pelo dia em que eu e meu amigo trocarmos de lugares diante do espelho, opostos tão parecidos, tão próximos. Talvez por isso me fascine a ideia do crepúsculo: Lua e Sol, os equivalentes opostos, se encontram, mesmo que brevemente, na dança dos céus. Me fascinam os olhos do meu amigo porque é neles que nós nos encontramos na dança do tempo, na eterna dança do espelho.

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