Corpos Cadentes
Dia nublado. Luz do sol corta uma cortina de nuvens por uma fresta tímida e toca o meu rosto suavemente; quem será que tenta me alcançar? Que está na luz do sol?
Caminho pelo cais, instável - a maré encheu subitamente. Um vestido vermelho emerge ao longe - hoje até chove, em tributo ou lamento, mas chove.
O dia acinzentado torna-se fúnebre. Toda a cidade parou para marchar juntamente à melancolia pela justiça. A estrada de tijolos amarelos foi sedimentada pelo verbo - talvez quem fala demais não vá a Roma, mas chega em algum lugar; e afinal, não é isto que importa? Não, você não está mais no Kansas, encare a realidade.
Anna Akhmatova escreveu que "bebe para o fato de que o mundo é brutal e cruel", bem eu não quero acreditar, mas hoje ela até que me convence. O "hoje" é um lugar incômodo, é uma passagem do tempo onde sinto asco - onde o meu coração se partiu quando uma mulher foi taxada de aberração e desovada na solidão.
Caminhamos juntos para o cemitério. Caminhamos juntos, ressentidos de nós mesmos pela apatia. "Se pudéssemos voltar no tempo teríamos feito alguma coisa" - amanhã é tarde demais, hoje ainda parece muito cedo, como lidar? Desculpas, para onde quer que você vá é tudo que encontramos. Ainda é de manhã, eu me alimento de mentiras.
"O meu filho não queria matar essa coisa, a culpa é dele por querer ir contra Deus", "Não é culpa do menino, essa aberração provocou ele", "Aqui não tem essa, ou é um ou é outro, não muda não."
Eu realmente sinto nojo. Nojo das pessoas que tentam me fazer soar como revolucionário descabido e naturalizar todo o absurdo que se passou. Desde quando não atacar a identidade das pessoas e dar-lhes paz é ser revolucionário?
Um corpo que cai. Nesta cidade nascemos no cinto e morremos nele. Quem ousa se livrar das amarras morre por elas, e não nelas.
Me aproximo de um caixão úmido rodeado dos últimos que conseguem ter seus corações partidos pela injustiça. "Beatriz", este é o nome que estava na luz do sol em meu rosto mais cedo. Este é o nome da dona do vestido vermelho. Eu chorei pela minha alma, eu chorei pela alma de Beatriz, eu chorei pela alma do mundo.
Eu me sento numa calçada qualquer e tento digerir aquela situação. Todos os anos milhares de corpos caem. Corpos a mercê de si mesmos. Eu me sinto mal, acho que só isso que me resta, o dissabor da injustiça. Eu não sei por quem os sinos dobram, só sei que não é por nós, não é por elas. Milhares de corpos que caem, ninguém parece se importar, ninguém parece se entristecer, os dias se põem, até eu me pus em melancolia - ninguém parece se importar.
0 comentários: