Os Zumbis e Nós
Sonâmbulos da América Latina, uni-vos!
Eu vejo vocês, debaixo da minha sacada, caminhando madrugada afora sem previsão de retorno.
Vocês dizem que vão trabalhar, mandam seu corpos frios para os turnos da noite nas fábricas e inalam a fuligem dos sonhos.
Eu vejo as melancias rolando quitanda adentro no breu da noite, emoldurando a cena um motorista bebericando Red Bull e fumando um cigarro - caro caminhoneiro, você ressuscitou? Consegue me ouvir?
Meu vizinho caminha pelos corredores ciclicamente, eu o espio pelo olho mágico; fúnebre e melancólico ele deixa o rancor transparecer em seus passos - estranho conhecido, quem te magoou tão violentamente? Por que a recusa a dormir?
Eu ligo a tevê mas as emissoras já saíram do ar, ou será que fui eu?
Todos os dias eu vejo milhares de zumbis, homens de fumaça, claustrofóbicos, melancólicos, ansiosos, estressados, apáticos. Quando nós desaprendemos a camuflar as nossas imperfeições?
Quem sou eu? Durmo paranoico, me recusando a acreditar nos caminhos que me são enfiados goela abaixo, mas acordo perdido num sub-sonho, desnorteado, rodeado por homens que não fazem a mínima ideia do que estão fazendo - esta é a impressão: ninguém faz a mínima ideia do que está fazendo, mas todos continuam a fazer.
Brasil, por que você me deixa à mercê de mim mesmo? Por que você me faz pensar sobre as coisas que me machucam? Será que você vai me fazer ver os mesmos homens condenados todas as noites? Eu não consigo parar de lhes observar, estou obcecado.
Estou obcecado pelas fraturas expostas do país - se me permitisse um palpite diria que os operários sonâmbulos debaixo da minha sacada são a tíbia.
Brasil, quando você vai me dizer que as coisas ficarão realmente bem? Eu não aguento mais ouvir relatos nostálgicos de uma classe média fantasma - eu não quero ouvir de um moleque qualquer lições de como nós dois deveríamos viver juntos - sinto muitas saudades de quando você sussurrava no meu ouvido "as coisas estão bem, volte a dormir".
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