14 de novembro de 2015

Carta Para Sidney

Tive este delírio com uma história de amor imbatível e interminável. Um amor tóxico mas ao mesmo tempo curativo, amor ambíguo, amor athame, amor real - os contos de fada modernos tendem a um certo desapontamento, nem todas as histórias terminam bem ou mal, algumas apenas terminam. Nem todos os mocinhos, vencem, nem todos os vilões perdem, a vida prega estas peças e demanda de nós que nos acostumemos com isso.
Esta carta é uma saudação à memória e à esperança de um futuro melhor, memória agridoce, como todas as coisas na vida; personagem humano, com medos, anseios, fraquezas, puramente humano - certa vez alguém acreditou que as histórias precisavam abrigar homens emblema, pessoas louváveis o suficiente para que pudessem ser exibidas mundo afora; felizmente os humanos são essencialmente diferentes, e não há nada de errado nisso, errado é fazer alguém sentir-se mal por não ser uma figura "propícia" a exaltação popular. "Foda-se você e os seus ícones, eu quero mesmo é ser estranho", aposto que Sidney diria algo do tipo.

"Sidney, se eu pudesse fazer tudo de novo eu teria sido poeta.
Se eu pudesse, em 1973, largar a escola de engenharia e o livro de cálculo II só por um segundo para sair com você e falar sobre o mundo; eu teria sido poeta, com toda a certeza.
Veja, nunca fui de fantasiar tanto, eram os anos setenta, as pessoas tentavam a todo o custo abandonar as influências hippie e apegar-se a um materialismo cego, todos menos você, não é mesmo? Você era hippie antes mesmo dos hippies e continuou a ser depois que eles se foram - hoje você é considerado alternativo, mas naquele tempo era puramente louco! Meus pais não gostavam de me ver ao teu lado e os meus amigos mal pronunciavam o teu nome, eles lhe repudiavam - eu nunca te defendi, mas você sempre esteve ao meu lado.
Sidney, se eu tivesse pulso eu teria sido poeta e esquisito ao teu lado. Todos na escola de engenharia eram mortalmente entediantes, ninguém ouvia Janis Joplin, ninguém queria falar sobre o pôr do sol ou gotas de chuva numa manhã de sábado, o único assunto relevante era concreto e números; eu sempre fui abstrato mas tentava inutilmente me conter. Por que você me deixou à deriva de mim mesmo, Sidney? Foi por que te disse para ir embora? Eu não estava falando sério quando disse aquelas coisas...Naquela época eu estava profundamente infeliz, quis fazer com que alguém se sentisse do mesmo jeito que eu...Sei que é cruel, mas é humano, eu me arrependo, mas não espero que me perdoe. Eu te amo...Sim, ainda amo.
Era você quem dizia: "Amor é deixar livre", não é mesmo? Isso sempre me incomodou, eu jamais quis ser livre, eu queria estar contigo, queria ser seu, e queria que você fosse meu.  Eu sou filho de um lar falido, uma família cinza, eu não poderia lidar com as tuas incertezas, com os teus sentimentos vagos, com o teu amor livre. Você era poliamorista antes que todos admitissem que estavam cansados um dos outros, apesar de tudo você nunca se cansou de ninguém, nem de mim, como é possível? Como alguém pode ser tão avant-garde?
Sidney, me desculpe, mas você era um esquisito, uma aberração em 1973, eu tinha medo de ser tão aberrativo quanto, ou melhor: que me vissem como realmente sou. Você era um magricela de sexualidade fluída que vivia de carona com desconhecidos e dormindo em seus sofás, eu era apenas um garoto gay introvertido que sufocou sonhos por temores. "O que as pessoas vão pensar?" eu me perguntava  todas as noites enquanto você se pegava com todas as pessoas que lhe apareciam pela frente nas noites de sexta em um luau qualquer. 
Sidney, eu ainda tenho medo do ridículo, sempre tive, será que isso é um problema? Sou menos humano do que você por ser tão obcecado pelo que um dia me empurraram goela abaixo e chamaram de compostura? Menos livre eu sei que sou - se ser humano consiste em ser livre então...Sim, sou menos humano, e me ressinto disso.
Sidney, eu queria ter sido um poeta, eu queria ter sido um esquisito, eu queria ter sido...Eu.
Me desculpe por tentar enterrar os seus ídolos tantas vezes, eu invejava o seu espírito, admito, tentei parti-lo.
Eu sempre te amei, de 1973 aos dias de hoje. Nem sempre soube expressar o meu amor da forma correta, às vezes o amor é destrutivo, sabe? Pessoas problemáticas não sabem lidar com sentimentos bons e respondem a eles de formas estranhas, é o meu caso. A minha violência era causada pela estranheza que se apossou do meu corpo num momento em que concentrava todas as minhas forças em ser um cara-padrão, completamente correto, sem nenhum "desvio". Com o tempo percebi que pessoas que se esforçam para não ter nenhum desvio são os reais problemáticos - um pouco de loucura é fundamental, é o que nos dá personalidade, ânimo; esconder a loucura é tolice.
Sidney, se eu pudesse fazer tudo de novo eu teria sido um poeta. Infelizmente não posso fazer tudo de novo, mas ainda posso ser poeta. Sidney, ainda ficaremos juntos, e nos sentaremos debaixo das mesmas árvores e escreveremos poemas belíssimos sobre tudo o que sentirmos e toda a beleza que nos cerca.
Sidney, eu me sinto sentimental sobre isso tudo, e aposto que você também, não venha jogar na minha cara que eu amoleci, eu sei disso, não preciso que me lembrem. Sim, eu sou um coroa sentimental, do tipo que jurei jamais ser; bizarro, não é mesmo?".

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