Um Monumento à Infância
cinco dias atrás eu fui flagrado rezando
uma novena para santo antônio e de repente
eu era bem-vindo neste sonho --
havia sono no oratório entalhado na árvore
petrificada na casa de dona Etelvina. dois anos
atrás, talvez dez, ou até mesmo quinze.
agora nada mais que lembrança. sonho
do mercado imobiliário: quando eu era pequeno
só se falava de bolhas e prédios imensos.
hoje é dia de comer feijão e de ver gente, nessa ordem.
farinha no prato pra assentar o que vem por aí:
copo na mão esquerda atento a quem passa, Pedinte
sedento, de pernas curtas e cachos caramelados.
copo e barriga finalmente cheios.
velhas satisfações;
domingo depois do almoço
e eu sou o gato nas escadas
de pedra carcomida da casa
sobre a casa sob a casa.
seis horas eu não volto,
só lá pras oito. vou com vó.
sete e pouca acaba a reza.
só vou depois de cantar pra antônio --
eu lembro de ter pedido um amor mas não faz tanto tempo assim.
rezei um livro inteiro sem saber ler - quando eu era miúdo em tamanho.
minha mãe sabia as palavras, eu sabia o que queria.
fé é intenção & vontade & sonho.
eu tenho muita fé em mim. já tive menos.
cachorro imenso por detrás dos portões do quintal -
para mim, criança-lua frouxa que sou, o Diabo.
mas impronunciável e impensável é o Diabo em famílias católicas.
então para mim aquele cachorro era Medo.
e todos os cachorros dali em diante passaram
a ser Medo também, até que Medo se tornasse um outro alguém.
cheiro de incenso e gente estranha na casa.
sorriso fraquejante para mulher autoimposta como
íntima, que me carregou em 1999 no portão
lá de casa e agora clama direito sobre meu afeto.
não dou!
o meu amor é uma conquista,
jamais um direito.
o homem que vivia na ponte do arco-íris hoje é um pouco mais triste.
ele nunca partiu em direção à sua grande aventura.
o destino é um rio curvo.
minha avó me disse que é melhor que ele não tenha partido.
não sei se concordo, mas ela tem oxum de frente assim como eu, respeito.
respeito a fala de quem verte o destino no rio.
minha avó é inicio
e eu sou caminho.
minha mãe quem me desaguou
aqui, mas ela é seu próprio oceano-mangue. bifásica e heterogênea.
porque eu nunca tirei o meu pé da água, nem da terra, desde menino.
lá em casa é só lama e rio e mar.
eu, mais água do que gente,
sou muito as histórias que eu tenho pra contar.
e ainda assim,
por detrás da minha pequenez,
havia um sonho sobre grandeza.
Ilustração por: Hiroshi Yoshida
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