Avenidas e Quarteirões
Um Grande sujeito; nos encontramos diversas vezes, ele nunca lembrou o meu nome, eu sempre o amei.Seus olhos encontram com os meus no cruzamento da Avenida Central com a Rua dos Patriarcas, onde ele sempre toma café numa pequena cafeteria alemã; ordena aos seguranças que fiquem de prontidão na entrada da cafeteria, todos entram, menos eu. Nós nunca pediremos bolinhos de creme um ao lado do outro. Me entristece não estar perto, mas me alegra saber que ele nota minha presença.
Nós nos conhecemos na première do seu novo livro; ele vestia um casaco de pele estonteante, daqueles que fariam Brigitte Bardot ter uma síncope – Ele ficava lindo de qualquer jeito. Eu o observava caminhar vagarosamente para dentro da livraria, cada passo era uma pose para fotografias, e as fotografias eram migalhas para o pássaro da alma.
Do outro lado do cordão isolante vejo um homem de feições sombrias e olhar mal-intencionado; em suas mãos um balde com o que parecia ser tinta – Não conseguia acreditar que ainda atiravam baldes de tinta em casacos de pele em pleno século 21, será que não poderiam ser mais criativos?
Não poderia deixar que profanassem o belíssimo casaco do meu amado, e por isso, no auge de meu heroísmo, me atiro em cima dele ao menor sinal de aproximação do homem com o balde. O público entra em choque – Quem era a maníaca que derrubou o queridinho da América às cinco horas da tarde de uma sexta-feira? Fui eu mesma, e quando tentei me explicar não havia mais homem sombrio ou balde de tinta, só dois seguranças gigantescos me segurando e um escritor furioso.
Não gosto muito de lembrar deste episódio, então serei breve: não fui presa. Acho que a agente dele decidiu tirar proveito da situação toda e usar o clássico clichê da jovem adulta (preferiria pós-adolescente) que se atira aos pés do seu grande ídolo – Ídolos, teoricamente, não maltratam fãs, então não prestariam queixas – Eu o amo, mas não o suficiente para me atirar em pleno carpete da livraria MGT.
Pouco depois do incidente comecei a encontrar Kali, o autor de quem lhes falo, por todos os lugares. E me encantava vê-lo onipresente no meu dia-a-dia, desde quando almoçava no restaurante defronte à faculdade, até quando o encontrava nas festas que frequentava juntamente a meus amigos. Nunca nos falamos. Nem mesmo um “Olá”, nunca ousei pedir autógrafos, sentia uma complicada mistura de medo e vergonha pela première.
Sirenes sujas ao fundo do entardecer na boulevard, fotógrafos de rapina me rodeiam como urubus, à minha frente Kali, deitado sobre o asfalto, estático, quase como um oásis; largo minha mochila e corro a seu socorro. Eu toco o seu peito e sinto o seu coração, ele imediatamente abre os olhos, aterrorizado.
- Quem é você? Por que me trouxe até aqui?
- O que? Eu lhe encontrei aqui, na calçada, desmaiado...
- Mentira! – Ele grita, vigorosamente – neste momento uma chuva de flashes recai sobre nós – foi um dos momentos mais assustadores da minha vida.
Os fotógrafos resolvem parar de tentar enriquecer a história para os tabloides e decidem me atacar: “Cacem a fã nº1, tragam-na viva e a arrastem até a coletiva de imprensa”. Mortes somente sociais, nenhuma física.
Mais um escândalo para a minha vida, como se ela já não fosse difícil o suficiente. Curso o terceiro semestre do curso de design gráfico, um dos meus sonhos era ilustrar um dos livros de Kali, conforme ia lendo suas histórias, os rostos das personagens iam desenrolando-se pela minha mente – tenho dezenas de projetos, nunca enviei nenhum deles.
Sou a mais recente piada da universidade – a artista obcecada que não contente em ser rejeitada por seu favorito tenta sequestrá-lo. Fiquei contente por ser chamada de artista, ainda que me ressinta um pouco do rótulo de sequestradora, sei que não sou, mas pelo modo que falam, dói.
Outro dia recebi em casa um documento que me impedia de estar a menos de cem metros de proximidade de Kali, surtei. Juntando todos os meus conhecimentos de fã, lembrei de alguns de seus costumes conhecidos e me dirigi ao cruzamento da Avenida Central com a Rua dos Patriarcas onde sabia que ele costumava tomar café.
Os seguranças me encaram, percebo que não há jeito de entrar na cafeteria, viro as costas e sento num velho banco de madeira do outro lado da rua. Espero meia hora, uma hora, duas horas e nada dele sair, o que havia de tão importante naquele lugar?
Finalmente ele sai, grito por seu nome, ele me olha, vira o rosto e anda apressadamente para o carro que havia estacionado no quarteirão seguinte. Eu corro, paralela a ele do outro lado da rua enquanto grito seu nome sem perder o fôlego; precisávamos deixar as coisas claras de uma vez por todas: por que todos estes acontecimentos estranhos nos cercavam?
Percebo que ele se aproxima do carro, não poderia deixar que escapasse; atravesso a rua correndo desesperadamente, estou quase alcançando-o quando um carro bate em mim e me arremessa para longe. O vidro do para-brisa se espatifa juntamente às minhas expectativas – é assim que terminam os sonhadores nas metrópoles: desmantelados e ensanguentados antes que possam pensar em suceder? Não há sucesso para quem não sabe se aproveitar dos quinze minutos de fama.
Agora, fora de mim, posso ver claramente: não era assédio, era o jeito da cidade tentar me alavancar, e eu, de tão conspiratória e cismada, acabei conspirando para o meu próprio fim, sem perceber.
Um último suspiro na calçada, carros passam, alguns civis arregalam os olhos do outro lado da calçada, atônitos, o motorista do carro que me atropelou fugiu; Kali ajoelha-se, perplexo, no chão, e umas jovens senhoras saem da cafeteria com sacos cheiros de bolinhos de creme.
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